Complexo de dormitórios que recebeu premiação foi feito de madeira e tijolos ecológicos. Estruturas são modernas e lembram as ocas indígenas.
O calor pode chegar aos 40°C em uma fazenda de Formoso do Araguaia (TO), mas o vento circula livremente e refresca os dormitórios da escola rural de Canuanã.
As construções lembram uma oca, com grandes pátios com redes, flores e plantas. Mas a estrutura segue conceitos atuais da arquitetura, como a sustentabilidade. A madeira usada é de reflorestamento, e os tijolos ecológicos foram feitos da terra da própria fazenda.
Foi essa combinação entre modernidade, tradição indígena e elementos da natureza que garantiu ao projeto o título de melhor construção arquitetônica do mundo, no prêmio Internacional Riba 2018, que acontece a cada dois anos no Reino Unido. A vitória foi anunciada na última terça-feira (20).
A escola, de 45 anos, fica numa área de 2.500 hectares na fazenda Canuanã, que é próxima à Ilha do Bananal. Ela é rodeada por uma extensa área verde, cercada pelo rio Javaé e vizinha de aldeias indígenas.
Oitocentos e quarenta alunos de baixa renda – sendo cerca de 40 indígenas da região – frequentam ali turmas que vão do 2º ano do ensino fundamental até a 3ª série do ensino médio. A escola é administrada pela fundação do banco Bradesco e tem 240 funcionários.
Todos dormem no local. Por isso, o arquiteto Marcelo Rosembaum e o Grupo Aleph Zero, responsáveis pelo projeto, pensaram em detalhes que pudessem transformar os prédios em lar. Eles conversaram com os alunos, funcionários e vizinhos. As obras começaram em setembro de 2015 e terminaram em dezembro de 2016.
Como é o prédio
O projeto vencedor contempla dois dormitórios – um feminino e um masculino – para os alunos mais velhos, a partir do 6º ano. Com 11 mil metros quadrados cada um, eles têm dois andares. No térreo, ficam os quartos, com seis camas cada, um banheiro, lavanderia e uma mesa para estudos. Também há pátio com bancos e redes usadas para tirar um cochilo ou descansar entre uma atividade e outra.
Na parte de cima, há mais locais para colocar redes, mesas de ping pong e para prática de jogos de tabuleiro. Há ainda uma sala de televisão e uma sala de leitura com design moderno, uma mesa, que lembra figuras geométricas, computadores com internet e um quadro para os alunos escreverem. Apenas 34% das escolas rurais privadas do país têm salas para leitura, segundo dados do Censo Escolar de 2017.
Cada quarto tem um nome em português e, ao lado, uma figura que representa a palavra na língua Inã, idioma dos indígenas javaés, que vivem na região. Os símbolos foram pintados pelos próprios indígenas.
As cores do local remetem à cultura local: o vermelho das redes é o colorau, da pintura dos indígenas, e o amarelo nas almofadas lembra a produção agropecuária, plantio de milho.
“É uma construção pensando na sustentabilidade, nesse prédio não tem um pedaço de madeira da natureza, é tudo de reflorestamento, eucalipto filetado, prensado e tratado. O tijolo foi feito com terra da fazenda, não se usou lenha para queimar o tijolo, ele é prensado numa prensa manual. Não precisa colocar ar-condicionado, que é um enorme ganho com economia de energia. E tudo isso dentro da natureza”, diz o diretor Ricardo Rehder Garcia.
‘Orgulho da escola’
A estudante Ana Luiza de Sousa, de 17 anos, faz a 3ª série do ensino médio. Ela estuda há três anos no local, e os pais moram no assentamento Lagoa da Onça, localizado a 70 km da escola.
A adolescente fez o ensino fundamental numa escola do assentamento. “Eu precisava andar a pé da minha casa ao ponto de ônibus, acordava às 5h30 para chegar às 7h na escola. Muitas vezes, na época de chuva, o ônibus quebrava na estrada”. Hoje, ela sente orgulho de onde estuda.
“Eu gosto dos estudos, que são diferentes, da convivência com as pessoas. Lá fora as escolas são precárias, tudo o que precisamos temos aqui, os funcionários apoiam e ajudam a gente, e temos sempre algo para fazer”.
Na fazenda, os estudantes têm cursos de equinocultura, mecanização, bovinocultura, doces e salgados e cursinhos preparatórios para o Enem.
O desafio para os alunos é ficar longe da família. Muitos vão para casa nos fins de semana, mas os pais precisam ir buscá-los. “Sentimos saudades, mas isso a gente aprende a superar, aqui eles preparam a gente para a sociedade”, complementou ela.
Para fugir da rotina, os estudantes participam de trilhas ecológicas, churrasco, brincadeiras, festivais de sorvetes, festas durante a noite, desfiles e concursos de beleza.
Quando terminam o ensino médio, muitos escolhem sair para fazer faculdade. Outros participam de uma seleção e continuam na escola fazendo curso profissionalizante em agropecuária. Os que têm as melhores notas são chamados para trabalhar no banco privado, cuja fundação administra a escola.
“Aqui tem as mesmas tecnologias que têm lá fora. Passaram umas 20 turmas na minha mão e eu vejo o fruto desse trabalho, fico orgulhosa, tem muitos meninos bem-sucedidos. Quando eu vejo um aluno que foi meu se destacando, é um motivo de muito orgulho. Fui aluna e hoje faço parte dessa história”, disse a professora Darziler Machado.
Ela vive há 40 anos na escola, se casou com um homem que também foi estudante e, juntos, eles tiveram duas filhas. As meninas também estudaram lá, e uma delas se formou em psicologia. Ela voltou para trabalhar na escola de Canuanã.
Surpresa
Os alunos se surpreenderam ao saber que a escola recebeu um prêmio internacional. A notícia foi estampada no mural da escola.
“Fiquei surpresa, é gratificante estar nesse local. Nunca imaginei. Por mais que seja bonito, há vários países que possuem verbas bilionárias e que constroem estruturas gigantescas”, disse Ana Luiza.
“Acho que venceu o prêmio porque toda essa estrutura fica no meio do mato, perto das aldeias e num estado que não é tão desenvolvido como os outros. Além disso, é tudo de graça”, disse a estudante Yara Leão Marinho, de 18 anos, do 3º ano do ensino médio.
O diretor acredita que o aconchego e a qualidade de vida que os alunos têm no local chamaram a atenção dos jurados.
“O grande diferencial é a qualidade de vida, a tranquilidade que isso trouxe para as crianças e para os adolescentes. A gente tinha uma leve impressão de que a estrutura poderia ganhar o prêmio pelo viés social, pelo bem que essa arquitetura fez para essas crianças, mas a concorrência era muito forte. A surpresa foi muito grande”, diz Ricardo Rehder Garcia.
A Escola de Canuanã
A escola fica numa extensa área de uma fazenda. Tem enfermaria, ambulância, refeitório, duas estruturas onde ficam as salas de aula, parquinhos, campo de futebol, ginásio de esportes, prédio onde fica o setor administrativo, a biblioteca, as casas onde vivem os funcionários e mais dois dormitórios onde dormem os alunos menores.
O dormitório masculino é chamado de Morada dos Pássaros. Cada quarto tem o nome de uma ave. O feminino tem o nome de Morada das Flores e possui a mesma dinâmica de nomes.
Os alunos recebem uniforme completo, têm seis refeições diárias e atividades extracurriculares de esporte, dança e teatro.
A Fundação Bradesco, que mantém a escola, administra outras 40 unidades escolares pelo país. Na década de 70, a fundação tinha apenas duas escolas e viu a necessidade de construir uma no interior do Tocantins, onde muitas pessoas não tinham acesso à educação. A fazenda de Canuanã foi o primeiro internato da instituição.
Em comparação com outras escolas do país, a de Canuanã se destaca em alguns indicadores. “A nossa evasão hoje é bem pequena. Desses 840 alunos, eu tenho 18 que evadiram esse ano [2%]. É bem pequeno, mas queremos baixar ainda mais. A gente tem o lema de ‘nenhum aluno a menos”, disse o diretor Rehder. Segundo o Inep, a média de evasão no ensino médio é de 11,2% no país. No 9º ano do ensino fundamental, a taxa é de 7,7%.
Isaac Pereira Aguiar tem apenas 8 anos e, embora novo, sabe da qualidade da escola. Os pais dele vivem na Ilha do Bananal e, como na região não tem escola, precisou se mudar para a casa da avó no assentamento Lagoa da Onça, para fazer o 1º ano do ensino fundamental. “Na escola não tinha merenda, estou gostando daqui, jogo bola, estudo, tem parquinho, sou feliz”.